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quarta-feira, 6 de agosto de 2008

A arte da convivência

Por definição, até mesmo o mais doce, meigo e mitopoético dos vizinhos é um ser perfeitamente repugnante e insuportável. É uma lei natural, e não podemos fazer nada para mudar isso, a não ser matar com requintes de crueldade todos os seres vivos que vivem num raio de cem metros do nosso covil. O que é impraticável na sociedade atual.

Portanto, já não me surpreendo nem um pouquinho quando aquela família tão simpática – eles nem ao menos conseguem ser mitopoéticos – cujo único defeito é estar permanentemente invadindo o meu nicho ecológico com as festas de aniversário/debutante/velório/perda de virgindade. Especialmente porque eles são simpáticos que, mesmo antes da primeira confraternização, o meu pai pisava fundo no acelerador ao ver eles caminhando na rua em dias de chuva. Moro numa rua de terra.

Eles são capazes de incomodar de inúmeras maneiras. O primeiro lugar é merecidamente ocupado por bandas, seguidas de perto por festas. Depois, vêm todos os outros frutos da criatividade e da perversão sapienesca.

Para começar, sempre achei que fazer barulho para me incomodar é um golpe baixo. Falta de estilo. Olhe para mim, por exemplo. Incomodo muito bem em silêncio, e ninguém fica sabendo. Sabe como é, as pessoas não gostam de ser informadas desses detalhes. Por razões além da compreensão humana, se você fizer uma festa grotesca para incomodar
o vizinho da direita, o vizinho da esquerda toma o partido da vítima. Isso deve ter algo a ver com a conspiração universal dos vizinhos, mas o que importa é o resultado. E comer quieta dá um resultado melhor.

Fora o barulho, contudo, sempre observamos uma ou duas perversões realmente desagradáveis na vizinhança. Há a mulher que imagina que a rua é uma fossa séptica e, assim, lugar ideal para o esgoto. O líquido forma um brejo muito apetitoso que, devido a alguma anomalia geográfica, se localiza exatamente na frente do portão da minha casa. O prazer que um ser humano sente ao abrir a porta do carro, jogar as pernas para fora e sentir o sapato de estimação afundar no lodo é indescritível. Quase comparável ao de atirar bolachas água e sal no chão. O projeto de cimentar o cano volta à pauta todo verão.

Para melhorar, ela comete o crime de deixar o lixo dela na minha lixeira e o de roubar o lixo reciclável que a minha mãe separa com tanto cuidado. Mas eu agüento firme, até dar um jeito de roubar cimento de alguma construção. Só me permiti brincar um pouco uma vez. Depenei o pé de mamão que cresce no quintal dela, bem perto do muro, para dispor artisticamente as frutas ainda verdes e as flores e os botões e as folhas na frente do portão dela. Algo como “te pego na saída”.

Existem alguns tipos menos ofensivos, por exemplo, o velho safado. Passa o dia todo no portão, é deformado e sempre que a mulher dele não está por perto, cumprimenta todos os seres humanos do sexo feminino com um “Linda, linda, linda!”. Só. Suponho eu que isso se deve ao fato de ele ser torto. Ele está ciente de que se a mulher correr, ele não alcança, por isso se contenta com pequenos comentários. Algumas mais tontas até gostam dele. Dizem que faz elas se sentirem lindas. Prefiro botar mini-saia e passear na frente duma construção. Chupando banana.

Ou o pessoal que insiste em fazer a fogueira de festa junina embaixo da metade do nosso pé de amora que fica no quintal deles. Todo ano, a árvore pega fogo, e todo ano eles repetem o procedimento. O negócio aí é a quadrilha. Quando alguém grita, “Olha a chuva!’, eu crio um temporal em miniatura com a mangueira. Neca. Neca de fogueira. Neca de festa junina. Neca de incômodos...

Mas as bandas são uma questão à parte, um verdadeiro poema épico. Sempre quis saber porque é que eles precisam ensaiar no volume máximo. A única explicação plausível é que eles tentam substituir qualidade pela quantidade, em tempo e volume. A capacidade de se iludir de certas pessoas é realmente assustadora. Sei que se eu fizesse parte de uma banda dessas, faria os ensaios num volume bem baixo. O que é uma prova concreta de que todos que dizem que eu não tenho vergonha na cara estão tentando me caluniar.

Tudo começa com uma bateria tocando o hino do Brasil. Em comparação com a gargantuélica bateria, os outros instrumentos podem ser ignorados. Depois de repetir o ato patriótico por três vezes, passam a martelar “Sociedade Alternativa”. Não vou falar nada sobre o vocalista, mas ele canta feito um jumento com laringite. Espero que o jumento me perdoe por essa comparação. Porque eu não consigo emitir sons tão desagradáveis nem de propósito.

Eles se acham. Toda banda de fundo de quintal acha que eles são uns Rolling Stones, no mínimo, ou Led Zeppelin, e os Beatles são uma banda de fundo de quintal, comparados com eles. A sua capacidade de ignorar os próprios defeitos é perturbadora. Definitivamente, a música não está à altura do resto, mas não há meios de fazê-los compreender isso. Quando eu estou mala, e chata, e tosca o suficiente para ficar pendurada na campainha da casa deles durante uma ou duas horas, eles a desligam. Outro fato cuja lógica está além da minha capacidade intelectual. Talvez sou eu que sou surda, mas juro que não ouviria ela tocar nem se estivesse colada na minha orelha.

Os pais deles lhes dão todo o apoio do mundo. Apesar de sempre acharem algo para fazer fora de casa durante os ensaios, defendem com unhas e dentes o talento musical do filhinho e seus amiguinhos. Nessas circunstâncias, não resta nada além de apelar. Como todos sabem, a banda acabou com ovos podres no muro da casa, passando a se reunir em outro lugar depois desse incidente. Os meus pais me obrigaram a lavar tudo, o que não me impede de me orgulhar até hoje do meu nobre feito.

Agora, imagine. Uma bela tarde, estou comodamente acomodada num sofá, me preparando moralmente para dormir. Sem qualquer aviso prévio, soa uma música indecentemente alta, e não só alta, como também simplesmente indecente. Isso dura uns trinta segundos e, no momento em que os meus pensamentos tomam o rumo “afaste de mim este cálice”, o
mundo volta ao normal.

Não, isso ainda pode ser uma invasão alienígena!

Espero a continuação por uma meia hora, contudo o fenômeno não se repete. Então, eu começo a ouvir vozes. Por alguns instantes, consigo me iludir pensando que é só esquizofrenia, mas a cruel realidade logo se impõe: tenho motivos para luto, pois o meu vizinho tem motivos para comemoração e está testando o microfone.

Em breve, sons de axé e sertanejo tornam-se insuportáveis, e os meus pais convocam uma reunião urgente na sala de jantar. Até o gato comparece. A família toda fica afiando as garras, mostrando os dentes e arranhando o ar. O primeiro fruto da discussão é a idéia de colar o botão do interfone com fita adesiva. Quando eu e o meu pai concordamos em fazer isso assim que a festa começar, a minha mãe corta o barato, lembrando que este vizinho é mais inteligente que o outro, e simplesmente não possui interfone. Voltamos à marca zero.

Depois de estudar os efeitos que a decepção provoca nas pessoas, a mãe entra com uma nova sugestão: colocar aquela massinha de modelar que vive em cima da minha mesa na fechadura do portão dele. Eu me revolto – aquilo não é massinha, é limpa-tipo! E mesmo que fosse massinha de modelar, a minha massinha de modelar é boa demais para o
portão daquele ser. Depois de uma breve discussão sobre os méritos da minha massinha de modelar, inexistente, da minha pessoa e do vizinho, chegamos a um acordo. Eu e o meu pai vamos até lá, pedir que a coisa abaixe o volume.

Temos muita sorte. No instante em que nos aproximamos do portão, chega uma nova leva de convidados. Encurralamos o proprietário da casa, desenrolamos a lista, de uns dois metros de comprimento e, em unissono, o informamos de todas as nossas reclamações.

"Mas é a festa de aniversário da minha mulher!"

O argumento é realmente imbatível.

A coisa nos encara como se fossemos dois doentes mentais, para não entender este fato tão banal. Porque ele então não faz a festa perto da casa da sogra dele, em vez de importunar pessoas inocentes? Por outro lado, se não fosse o sertanejo, como eu riria bem no focinho dele agora. O amante da mulher dele é uma graça de pessoa, eles adorariam se conhecer.

Quando eu possuo informações confidenciais, sou sempre perfeitamente educada. Já o meu pai simplesmente não conhece palavrões em português. Desse modo, nós concordamos educadamente com o fato de ser a festa da mulher dele. Mas ainda assim, será que ele não poderia abaixar o volume?

Nesse meio tempo, a mulher se junta ao vizinho. Os dois olham para a gente, visivelmente chocados e provavelmente pensando que a gente não entende o dialeto local.

Nós insistimos timidamente, afinal, diferentemente de alguns, não queremos incomodar ninguém por enquanto, e eu sugiro que ele vá à merda (isso se subentende) e leve junto essa porra (novamente, subentende-se) do som. Isto é, em alto e claro português, queremos que ele abaixe o volume.

A coisa, cheia de escárnio, nos acusa de não saber nos divertir e, com toda a ironia possível, aconselha ligar na polícia para ver se eles vêm dessa vez. O meu pai se vira e vai pra casa, está supinamente óbvio que ele está tão furioso que não consegue nem responder. Ao contrário dele, eu tenho muito que dizer para o vizinho. Por exemplo, que nós, diferentemente de uns certos retardados, que nem eu, nem o vizinho conhecemos e que acabam de se originar de chimpanzés, somos pessoas civilizadas e sabemos nos divertir sem incomodar mais pessoas do que o estritamente necessário.

É claro que, há um tempo, eu cortei todos os bambus decorativos que cresciam na frente da casa da coisa para embelezar uma festa junina. Além disso, o meu pai foi acusado – injustamente, pois ele só emprestou o arco e as flechas “de verdade” para um terceiro vizinho – de atentar contra a vida de um cachorro que mora na rua, caga na frente do nosso portão e que, na delegacia, a coisa declarou que era dele. Tudo bem que eu suspeite que quem caga na frente do nosso portão seja um moleque que mora mais adiante.

Mas isso tudo são pequenas diversões inocentes e, portanto, nada têm a ver com o presente caso.

Também teve aquela vez que eu atirei ovos na casa do quarto vizinho, mas a idéia nem foi minha. Foram eles mesmos que me imploraram para atirar aqueles ovos. De joelhos. Também joguei maionese no cachorro deles, ele sempre late e achei que ia ajudar-lhe a calar a boca, e água – nas visitas. E ainda contei para um casal que queria comprar a
casa do quinto vizinho que a filha do quarto vizinho teve um filho hermafrodita, ilustrando a narração com os detalhes mais repugnantes que consegui extrair de uma enciclopédia, e que o solo do lugar estava contaminado com metais pesados. Mas, novamente, isso tudo não tem nada a ver com a história.

Sem a mais leve sombra de dúvida, sou bem mais civilizada do que ele. Nesse ponto, eu poderia também informá-lo sobre algumas circunstâncias relativas à mulher dele, o que certamente deixaria a festa deles mais animada. Além do mais, se ele ainda insistir em não abaixar o volume a essa altura do campeonato, eu poderia também lhe comunicar que ele é uma vítima do aborto e que a mãe dele era uma puta duma vaca.

Mas eu sou uma pessoa racional, e segui o meu pai no mais completo silêncio. Chegando em casa, fui tomar banho e dormir. Aqui, preciso confessar uma coisa. Eu consigo dormir muito bem independentemente do barulho. Não me incomoda nem um pouco, é só uma questão de princípios e preocupação altruísta com outras pessoas que talvez estejam sendo incomodadas.

Os meus pais ainda acreditam na existência da polícia, sem dúvida influenciados pela aparição milagrosa da PM para invadir uma casa e acabar a festa que estava acontecendo ali, há uns onze ou doze anos atrás. Mas acho que o ponto não era a festa em si. Eu sou mais realista, portanto os deixei pendurados no telefone.

Enquanto tomo banho, uma brilhante idéia.

Aperfeiçoemos o primeiro plano da minha mãe, substituindo o meu precioso limpa-tipo por Super Bonder. Além do mais, é mais versátil e poderei passar também nas dobradiças, rodinhas... enfim, uma boa é furar os pneus dos carros que estão estacionados na rua, pelo menos dois por carro. Com um prego, para esvaziar lentamente. Ou com uma faca, para ter o prazer de ouvir o carro do infeliz se arrastando “de barriga” pela rua.

Sim, isso. Furar pneus com faca de cozinho é um saco.

Resumindo, o barulho prejudica principalmente a própria fonte do mesmo, pois aqueles que foram incomodados injustamente sentem um forte desejo de se vingar. E quanto aos incomodados por mérito próprio, sei por experiência que eles sempre dão um jeito de se esquecer do mérito nesses momentos e se juntam aos incomodados imerecidamente. Quando ele tiver que chamar um chaveiro para arrombar a porta da própria casa, poderá planejar uma nova festa. Com a minha total aprovação.

Isso se o amigo dele tiver consertado o carro até lá.

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